quinta-feira, 1 de setembro de 2011

A Cobra Grande

O imaginário popular da Amazônia consagra a Cobra Grande como uma das entidades mais presentes e fortes na mitologia regional. Sua origem é ultramarina, mas o réptil ganha inúmeras formas encantatórias que envolvem o visível e o invisível, nos inúmeros relatos recolhidos das populações ribeirinhas.

Estórias mostram que a Cobra Grande pode ter sido uma transformação de uma sucuriju ou sucuri ou mesmo de uma jibóia que, com o tempo, abandonou a floresta, adquiriu fenomenal volume e imergiu no rio, passando a habitar a parte mais funda, os poções, aparecendo vez por outra na superfície para punir ou proteger o amazônida. A crença cabocla diz que muitos dos igarapés e furos amazônicos são formados pela passagem de uma Cobra Grande que abre enormes sulcos nas restingas, igapós e até na terra firme. Aliás, entre os mais diversos povos do mundo é comum encontrar lendas, mitos, rituais e crenças que envolvem diversas espécies de ofídios.

A cobra é um dos símbolos mais universais e antigos da religiosidade. Como mito entre os gregos, a cobra pode ser uma transformação de Zeus (pai dos deuses) e, entre os cristãos, a encarnação de satã. Na região amazônica, mais precisamente entre os povos ribeirinhos, ela representa uma figura lendária e fascinante, assumindo diversas denominações: Boiúna, Mãe d’Água, Cobra Norato ou Boitatá. A Boiúna é considerada a rainha dos rios amazônicos e pode ter tido origem no medo provocado pela serpente d’água, que ataca o gado e animais de estatura média, perto de rios e igarapés.

Os índios não registram culto à cobra, mas ela não deixa de existir como personagem em suas narrativas lendárias. Para o caboclo, o encanto da Cobra Grande se manifesta na contemplação da natureza do rio, distanciada do cotidiano através do imaginário; é quando a Boiúna (mboi, cobra e una, preta) surge, causando medo, fascínio e influenciando as populações ribeirinhas, ora encarnada num grande barco iluminado, na lenda do navio transatlântico, ou através de inúmeras outras narrativas, como a da lenda que explica o surgimento da noite e outras coisas.

Segundo essa lenda, antes da noite existir, Moiaçu, filha da Cobra Grande, se casa e recebe do pai um caroço de tucumã (fruto da palmeira Astrocarium Tucuman) contendo a noite dentro dele. Outra lenda diz que uma linda índia cunhãmporanga, princesa da tribo, ao apaixonar-se pelo Rio Branco (Roraima), foi transformada numa imensa cobra chamada Boiúna, pelo enciumado Muiraquitã. A Boiúna é tida na região como protetora daquele rio, ajudando os pescadores e punindo aqueles que predam suas águas. Nos rios Solimões e Negro, a Cobra Grande nasce do cruzamento de mulher com uma assombração (visagem), ou de um ovo de mutum; no Acre, a entidade mítica transforma-se numa linda moça, que aparece nas festas de São João para seduzir os rapazes desavisados.

O lendário também apresenta a Cobra Grande como uma benfeitora à navegação dos rios amazônicos, cujos olhos tornam-se grandes faróis para orientar os embarcadiços nas noites escuras e durante as tempestades. Versão contrária coloca a Cobra Grande como entidade do mal, tal a sua voracidade e multiplicidade de transformação. Ela toma outras formas para enganar o caboclo, como a de navio à vela ou de um transatlântico que nas noites calmas rompe o silêncio com estranho ruído de vapor, percebendo-se ao longe uma mancha escura, precedida de um nítido barulho de máquinas. Ouve-se o badalar metálico de um sino e destacam-se as duas luzes brancas do mastro, além da vermelha de bombordo e a verde de boreste. Segundo o poeta João de Jesus Paes Loureiro, em sua “Epifania da Cobra-Grande”, o olho iluminado da Boiúna é uma espécie de vitral do imaginário. Para ele a luz é um símbolo ou metáfora que brilha em todas as culturas, como reflexo da divindade, sinal do saber e manifestação da beleza. É a oposição às trevas, dando à cobra a forma de Boiúna.

O mito da Cobra Grande, Mãe-d’Água ou Boiúna percorre cerca de quatro mil rios da Amazônia, ajudando ou aterrorizando o ribeirinho, de acordo com o imaginário local, chegando até às populações urbanas. Existe a crença de que algumas cidades estão situadas sobre a morada da Cobra Grande, como Santana, no Amapá, por exemplo, onde a Cobra Sofia é residente. Acredita-se que Belém também tenha sido fundada sobre uma cobra, crença que pode ter nascido com os primitivos missionários, que resolveram esmagá-la simbolicamente, colocando a cabeça da serpente sob os pés da imagem de Nossa Senhora, criando um sincretismo religioso com a cultura local. Outra tradição belenense afirma que a cabeça da Cobra Grande está em baixo da Catedral da Sé e a cauda sob o altar da Basílica de Nazaré, superstição reforçada na madrugada de 12 de janeiro de 1970, quando um tremor de terra abalou a capital paraense. Muitas pessoas acreditam que o sismo tenha sido provocado por um movimento do dito ofídio que, se abandonasse o leito, a cidade e todos os seus habitantes seriam tragados pelas águas da Baía de Guajará.

Acredita-se, também, que as ilhas, componentes importantes da paisagem e do imaginário amazônicos, são moradas ou refúgios preferidos das Boiúnas. Há ilhas flutuantes levadas pelas correntezas e as que aparecem e desaparecem nos perídos de enchentes e vasantes; Existem ainda as ilhas imaginárias ou errantes, como a Ilha do Esquecimento, no alto Amazonas, na qual as pessoas perdem a memória ao chegar; Dalcídio Jurandir faz referências à ilha Jaguarajó, no romance Marajó, tida como encantada pelo autor, porque “virava navio fantasma navegando meia noite pela baía”. A relação metafórica da Boiúna com ilhas e navios iluminados está expressa no fabulário popular da região, dentro do caráter estético da teogonia amazônica, como forma de vivência e compreenção da vida.

Fonte: ABrasOFFA via www.sobrenatural.org - Imagens: abrasoffa.org.br / techs.com.br

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